Por décadas, o ecossistema Delphi prosperou baseando-se na estabilidade e na tipagem forte do Object Pascal. No entanto, a recente explosão dos Grandes Modelos de Linguagem (LLMs) — como GPT-4, Claude 3.5 Sonnet e Gemini — introduziu um novo paradigma. Não estamos mais falando apenas de compilação de código, mas de geração e interpretação semântica.
Este artigo visa “quebrar o gelo”, desmistificando como essas IAs interagem com o Object Pascal e como você, desenvolvedor Delphi, pode transitar de um codificador manual para um “Programador Aumentado”.
O Cérebro Digital: Como LLMs Entendem Object Pascal
Muitos desenvolvedores Delphi questionam: “Como uma IA treinada massivamente em Python e JavaScript pode entender a sintaxe verbosa do Pascal?”
A resposta reside na arquitetura dos Transformers e no conceito de tokenização. LLMs não “leem” código como um compilador (que busca uma Árvore de Sintaxe Abstrata – AST perfeita). Eles leem padrões probabilísticos.
O Object Pascal, por ser uma linguagem altamente estruturada e legível (em inglês), é surpreendentemente amigável para LLMs. A estrutura begin...end, a declaração explícita de tipos e a separação clara entre interface e implementation fornecem um contexto semântico rico.
Matematicamente, quando você pede para a IA completar uma função Delphi, ela está calculando a probabilidade condicional do próximo token.
Devido à vasta quantidade de código legado disponível em repositórios públicos (GitHub, StackOverflow, bibliotecas de componentes), os modelos possuem um “mapa mental” robusto da VCL e, em menor grau, do FireMonkey (FMX).
Nota Importante: A verbosidade do Delphi, muitas vezes criticada, é uma vantagem aqui. Ela reduz a ambiguidade para a IA, resultando em alucinações de sintaxe menos frequentes do que em linguagens ultra-concisas.
Autocomplete Tradicional vs. IA Generativa
É crucial distinguir as ferramentas que já usamos no RAD Studio das novas ferramentas de IA.
O Modelo Determinístico (Code Insight / LSP)
O Language Server Protocol (LSP) usado no RAD Studio moderno é determinístico.
- Como funciona: Ele analisa os arquivos
.dcue.pasno seu path. - O que faz: Se você digita
Button1., ele listaCaption,OnClick, etc. - Limitação: Ele não sabe o que você quer fazer, apenas o que é possível sintaticamente fazer.
O Modelo Probabilístico (IA Generativa)
A IA Generativa é probabilística e baseada em intenção.
- Como funciona: Ela analisa o nome da sua procedure, os comentários acima dela e o código circundante.
- O que faz: Se você digita
// Função para validar CPF e formatar, a IA sugere o corpo inteiro da função, incluindo a lógica matemática de validação. - Vantagem: Ela atua como um parceiro de par (pair programming), sugerindo lógica de negócios, não apenas propriedades.
| Característica | Autocomplete Tradicional (LSP) | IA Generativa (Copilot, ChatGPT, etc.) |
| Base | Regras de Sintaxe e Compilador | Padrões estatísticos e Semântica |
| Contexto | Escopo atual (Unit/Projeto) | Intenção do usuário e conhecimento global |
| Saída | Lista de Propriedades/Métodos | Blocos de código, Refatoração, Docs |
| Risco | Erro de compilação (baixo) | Alucinação lógica (médio) |
Configurando Expectativas e “Prompt Engineering” para Delphi
Para obter bons resultados no Delphi, você deve ajustar suas expectativas e a forma como solicita o código (o Prompt).
O Desafio do “Dialeto” Temporal
O Delphi evoluiu muito. Uma IA pode sugerir código estilo Delphi 7 (usando AnsiString desnecessariamente ou gerenciamento manual de memória) quando você está usando Delphi 13 (que suporta Inline Variables, Generics e Anonymous Methods).
Dica de Ouro: Sempre especifique a versão ou o paradigma no seu prompt.
Prompt Ruim: “Crie uma lista de strings.”
Prompt Bom: “Crie um exemplo usando
TList<string>(Generics) no Delphi 13, utilizando variáveis inline para iterar sobre a lista.”
O Perigo do try..finally
A IA entende a lógica, mas às vezes esquece a robustez necessária em aplicações desktop de longa duração. Sempre verifique se os objetos criados (.Create) estão protegidos por blocos try..finally ou try..except.
Exemplos Práticos: Do Hello World aos Algoritmos
Vamos ver como uma IA lida com tarefas básicas quando instruída corretamente.
Exemplo A: O “Hello World” da VCL
Objetivo: Alterar o caption de um botão e mostrar uma mensagem ao clicar.
Prompt:
“Atue como um especialista em Delphi VCL. Escreva o evento OnClick de um TButton que muda seu próprio Caption para ‘Clicado!’ e exibe um ShowMessage. Use a variável ‘Sender’ para acessar o botão.”
Saída Típica da IA:
procedure TForm1.Button1Click(Sender: TObject);
var
Btn: TButton;
begin
// Cast seguro usando 'as' para garantir que o Sender é um TButton
if Sender is TButton then
begin
Btn := Sender as TButton;
Btn.Caption := 'Clicado!';
ShowMessage('Olá, mundo VCL!');
end;
end;
Análise: A IA corretamente sugeriu o uso de is e as para segurança de tipos, algo que um iniciante poderia esquecer.
Exemplo B: Algoritmo com Generics (Bubble Sort)
Objetivo: Ordenar uma lista de inteiros.
Prompt:
“Gere uma procedure em Object Pascal moderno que ordene um
TList<Integer>usando o algoritmo Bubble Sort. Comente o código explicando a complexidade.”
Saída Típica da IA:
uses
System.Generics.Collections;
procedure BubbleSort(AList: TList<Integer>);
var
i, j: Integer;
Temp: Integer;
Swapped: Boolean;
begin
if AList = nil then Exit;
// O algoritmo repete até que nenhuma troca seja necessária
repeat
Swapped := False;
// Percorre a lista até o penúltimo elemento
for i := 0 to AList.Count - 2 do
begin
if AList[i] > AList[i + 1] then
begin
// Troca os elementos
Temp := AList[i];
AList[i] := AList[i + 1];
AList[i + 1] := Temp;
Swapped := True;
end;
end;
until not Swapped;
end;
Análise: A IA gerou código sintaticamente correto para System.Generics.Collections. Note que ela optou por uma variação repeat..until otimizada do Bubble Sort.
Se pedíssemos a complexidade matemática, a IA explicaria que o Bubble Sort possui complexidade de tempo média e pior caso de:
Isso demonstra que a IA entende tanto a sintaxe do Delphi quanto a teoria da computação por trás dela.
Conclusão
A IA Generativa no RAD Studio não substitui o conhecimento fundamental da VCL ou da RTL. Pelo contrário, ela exige um piloto mais atento. O “Programador Aumentado” é aquele que usa a IA para eliminar a digitação de código repetitivo (boilerplate) e para gerar rascunhos de algoritmos, dedicando sua energia mental à arquitetura e às regras de negócio complexas.
Comece pequeno: use a IA para documentar código legado, gerar testes unitários (DUnitX) ou converter rotinas antigas para sintaxe moderna.
Validação de Referências
- Arquitetura de LLMs: Baseado no paper “Attention Is All You Need” (Vaswani et al., 2017), que estabelece a base dos Transformers utilizados pelo GPT e Gemini.
- LSP (Language Server Protocol): Documentação oficial da Microsoft (criadora do protocolo) e notas de lançamento da Embarcadero sobre a implementação do DelphiLSP no RAD Studio 10.4 Sydney e superiores.
- Sintaxe Object Pascal: Object Pascal Handbook de Marco Cantù (focando nas evoluções do Delphi moderno como Generics e Inline Variables).
- Alucinações em Código: Estudos sobre a eficácia de LLMs em linguagens de programação (ex: OpenAI Codex paper), que destacam a correlação entre o volume de dados de treinamento (GitHub) e a precisão da sintaxe gerada.
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